quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Memórias de uma Gueixa.

“Minha mãe dizia que eu era como a água. A água abre caminho mesmo através da rocha. E diante de algum obstáculo, ela encontra outro rumo”. Assim a personagem principal e narradora de "Memórias de uma Gueixa" se descreve nas páginas iniciais do livro.
Se para nós, ocidentais, causa estranheza o estilo de vida e tradições orientais como o costume das gueixas,  este livro desmistifica o assunto, ao mesmo tempo em que o envolve numa aura de romantismo e delicadeza.
Escrito na primeira pessoa, como se fosse uma narrativa a um interlocutor imaginário, esta é a história de Chiyo, uma menina pobre que, aos 9 anos, é negociada por um conhecido de sua família e levada para um Okya, templo de preparação de gueixas. Era o ano de 1929 e sua vida irá mudar para sempre.
Embora o livro se apresente em forma de memórias de uma das mais famosas gueixas do Japão, por trás dessa alma feminina e oriental está (surpreendentemente) um homem - e norte-americano.  Definido na contra-capa como “uma descrição minuciosa da alma de uma mulher já apresentada por um homem”, o romance de Arthur Golden cumpre o que promete.
A saga de Chiyo, que passa a se chamar Sayuri e torna-se uma das mais influentes gueixas de sua época, assemelha-se a uma história de Gata Borralheira que se transforma em Cinderela, não da noite para o dia, porém a muito custo e dor.
Passado o choque inicial diante da nova realidade, a menina empreenderá uma mal-sucedida tentativa de fuga e sofrerá várias humilhações e perseguições por parte de uma gueixa um pouco mais velha, Hatsumono, que quer impedir a todo custo sua ascensão. Em pouco tempo, Sayuri percebe que não vale a pena lutar contra seu destino e decide não apenas aceitá-lo, mas lutar por ele.

“Naquele momento eu deixei de ser uma menina com uma vida vazia para ser alguém com um propósito. Percebi que ser gueixa poderia me trazer uma coisa: um lugar no mundo”.

No desenrolar da narrativa, ela aprende as artes da dança e da música, do vestuário e da maquilagem; o domínio do shimizen (uma espécie de bandolim); a maneira de servir saquê, revelando apenas um ponto do lado interno do pulso; o jeito de andar, a forma de olhar e sorrir, visando cativar os homens a quem tem o papel de entreter e divertir. Com os anos, torna-se uma bela mulher “de olhos azuis-acinzentados”.
Mesmo que tenhamos restrições a respeito da tradição japonesa, o texto suave, terno e espantosamente feminino de "Memórias de uma Gueixa" nos leva a torcer pela felicidade de Sayuri, que passa por muitos sacrifícios em sua preparação, inclusive um odioso episódio em que sua virgindade é colocada em leilão: o mizawe.
Nessa trama de Cinderela oriental não faltará a paixão, reservada a um homem que ela vê pela primeira vez na infância e que, tempos depois, descobre ser o presidente de uma grande empresa japonesa. Objeto de paixão platônica por parte de Sayuri, ele será chamado de Presidente até o fim do livro. Não faltam também benfeitores: o horrendo Nabu, sócio do Presidente, herói deformado pela guerra, cliente fiel e amigo dedicado de Sayuri. E a gueixa Mameha, que se torna sua irmã mais velha (professora nas artes de entreter os homens). Compenetrada, a menina irá aprender bem a lição, transformando-se numa confiante e bem-sucedida gueixa. Mas será que, como a maioria das gueixas, irá renunciar ao amor? A resposta está nas páginas finais do romance.
Sobre o autor pode-se dizer ao menos um pró e um contra. O pró é que seu texto delicado, coberto de metáforas e representações poéticas, desvenda aos leigos o mundo das gueixas e rompe um pouco com o preconceito associado ao tema, além de prender a atenção do leitor com uma trama cheia de aventuras. O contra é o que foi revelado mais tarde: o livro é baseado em pesquisas e entrevistas do autor com genuínas gueixas japonesas, sobretudo uma das mais famosas, Mineko Iwasaki que acusou o autor de “roubar” sua história e inserir no romance algumas inverdades a respeito do costume nipônico. Pouco tempo depois, Mineko Iwasaki escreveu suas próprias memórias, intituladas “Minha vida de gueixa”.
Entre prós e contras, não deixa de ser uma delícia ler o texto de Golden.
Como diz o autor, na boca de Sayuri, “A gueixa é uma artista de um mundo imaginário. Ela dança. Ela canta. Ela o entretém. O resto é escuridão. O resto é segredo".

Livro: Memórias de uma Gueixa

Autor: Arthur Golden
Tradução: Lia Luft
Editora: Imago