quinta-feira, 18 de julho de 2013

A Casa de Virginia Woolf.

Muito pouco resta a ser dito ou escrito sobre Virginia Woolf (1882-1941). Romancista, crítica literária e ensaísta, uma das pioneiras do modernismo britânico, dona de um estilo único e uma escrita poderosa, escreveu obras memoráveis como Mrs Dalloway, As Ondas, Orlando e o ensaio Um Teto Todo Seu, contribuindo para a valorização da voz  feminina na literatura.Mulher a frente de seu tempo, no sentido menos piegas da expressão, fundou com o marido, Leonard Woolf, a Hogart Press, que se tornou uma das mais influentes editoras britânicas do século XX. 
Ambos faziam parte do seleto Grupo Bloomsbury, formado por intelectuais sofisticados, que introduziu um novo pensamento literário na Inglaterra, em oposição à tradição vitoriana. Com um casamento atípico e feliz, marcado por cumplicidade, respeito e liberdade, Virginia viveu várias e intensas paixões por mulheres. Mais do que amá-las, aparentemente o que mais gostava era o fato de ser amada por elas.
Leonard & Virginia Woolf
Mas a parte mais marcante de sua personalidade era menos feita de sonhos que de pesadelos. Com episódios frequentes de alucinações e crises depressivas, vivia entre a loucura e a genialidade, entre a apatia e a produção, entre a paixão e a melancolia. Pouco à vontade no mundo, buscava nos livros um refúgio e na literatura uma salvação. E tinha tanto medo de enlouquecer que acabou pondo fim à vida em 28 de março de 1941, aos 59 anos, jogando-se no Rio Ouse. Sua carta despedida sugere que estava assim libertando o marido de um futuro sombrio ao seu lado. 
Contudo, havia uma Virginia, mais precisamente a do lado de dentro de casa, que entre trechos de romance e visitas de amigos/as ou períodos de depressão, se dedicava à prosaica tarefa de dar ordens às criadas Nelly Broxall e Lottie Hope; e decidir o menu do jantar.
É essa a Virginia retratada pela escritora espanhola Alicia Giménez Bartlett, em A Casa de Virginia W. Um romance que expõe a relação tumultuada entre a escritora e Nelly Broxall, que trabalhou para os Woolf por 18 anos. Um relacionamento cordial no início, delicado com o passar dos anos e perigosamente nocivo no final. 
A ideia do livro surgiu quando Giménez, estudiosa do grupo Bloomsbury e seus protagonistas, debruçada num dos diários de Virginia, se deparou com o seguinte trecho: “Se este diário tivesse sido escrito por mim e um belo dia caísse em minhas mãos, eu tentaria escrever um romance sobre Nelly, a personagem. Toda a história entre nós duas, os esforços de Leonard e meus por nos livrarmos dela, nossas reconciliações.”
Resolveu então atender a esse “chamado”.
Pesquisando sobre o paradeiro de Nelly, acabou descobrindo em Londres uma certa Lady Prudence, que havia arrematado o diário da criada em um leilão. Conseguiu dela a autorização para fotografar as páginas, desde que não as usasse na totalidade. Promessa feita, desafio encaminhado. 
Alternando imagens reconstruídas de episódios extraídos das diversas biografias da escritora, com trechos dos diários de patroa e empregada, Bartlett nos revela o mundo doméstico de Virginia Woolf. As conversas triviais com as criadas, a escolha do cardápio do dia, encontros com amigos e suas constantes crises depressivas. Durante todo o livro, as vozes se alternam. Ora um diálogo recriado entre Virginia e Nelly sobre o significado do voto feminino (na época aprovado com inúmeras restrições); ora um trecho do diário da criada com reflexões sobre a falta de perspectiva de sua vida; num momento, um panorama das dificuldades pelas quais passava a Inglaterra em tempos de guerra; em outro, a voz da própria Alicia que se faz ouvir, com colocações sobre Virginia, sobre Nelly – e o tempo chuvoso de Londres!

 “Eu gosto quando a patroa está contente e não aguento quando a vejo com aquele olhar tão triste que se perde no ar. A patroa está completando 36 anos.”

“A patroa está de cama há quatro dias. Quando tem gripe ela nunca se levanta antes de uma semana. Isso também me entristece.”

Na recriação de autora, visualizamos uma atarantada serviçal, não muito inteligente, mas não de todo ignóbil, que soube tirar proveito do contato com os patrões intelectuais e seus amigos para ampliar seus pensamentos e visão do mundo. Nos jantares na casa de Virginia e Leonard era comum se encontrar artistas e intelectuais como Roger Fry, Katherine Mansfield, Vanessa Bell (irmã de Virginia) e a poetisa Vitta Sackville-West, com quem ela teve um forte affair que inspirou a obra Orlando, descrita por Nigel Nicholson como "a mais longa e mais encantadora carta de amor de toda a literatura".

“Ontem chegou a honorável Sra Vitta Sackville-West também chamada Sra Nicholson que passará toda a semana conosco em Monk´s House. É a primeira vez que eu vejo uma honorável. Não saberia dizer se ela é bonita ou não.”

Os hábitos inusitados do casal Woolf e as ideias avançadas do grupo não escapam ao olhar atento e espantado das criadas:

“Meu Pai eterno, ri tanto que achei que muitas costelas iriam se partir! Imaginei tudo desde o princípio, desde que Lottie veio porta adentro com os olhos arregalados e me disse que eles tinham começado a falar da Sociedade Britânica do Sexo. Estava escandalizada, sobretudo, porque haviam falado na sua frente, quando ela preparou a mesa para servir o chá.”

Embora aprendesse muito com o convívio com os patrões, Nelly delimitava uma linha imaginária que a separava do mundo deles. Jamais teria uma casa, dificilmente teria um casamento e ainda que o tivesse (como a própria patroa dizia), provavelmente seria mais uma escrava do marido, trabalhando sem receber.

- Então uma mulher não deve se casar nunca?”
- Não sei, Nelly, não sei, talvez em tempos menos complicados, ou com um homem que ele possa oferecer algo melhor.
O fato é que Nelly rompeu um noivado com um homem bastante simples e nunca se casou.

Reunião do Grupo Bloomsbury
Com o tempo, nos diários de Nelly e de Virginia, Alicia descobre menções a respeito de incidentes domésticos, percebendo as transformações pelas quais passa o relacionamento. Nelly torna-se mais questionadora, Virginia mais impaciente. Nelly se comporta de forma crítica e irônica. Virginia mantém-se distante, quase indiferente. Muito embora a animosidade se alternasse com fases de tranquilidade, o fato é que a relação entre as duas parecia prestes a explodir.
Entre diversas reflexões, Bartlett busca analisar, aos olhos de Nelly, o envolvimento de Virginia Woolf com suas amigas. “É inútil tentar saber se entre Virginia Woolf e Vitta Sackville-West houve algo maior que um amor espiritual baseado na fascinação mútua. Há biógrafos que se inclinam por essa opção e outros que sustentam que entre ambas houve contato sexual. (...) Lendo o diário de Nelly, também não podemos encontrar alguma luz sobre a índole desse amor. Mas isso pouco importa para minha reconstrução da vida de Nelly. O fato evidente é que aquela relação escandalizava a cozinheira , e não porque fosse algo diferente daquilo a que os membros do grupo a tinham acostumado, mas pela vergonha pública que representava para Leonard Woolf. Curioso.”
Monk´s House (A Casa de Virginia Woolf)

Com base no livro, não causa estranheza o comportamento da criada. Para alguém como ela, que nada possuía de seu no mundo (nem mesmo o quarto em que dormia), sem perspectiva de ascensão, seria quase impossível não acalentar ressentimento pela patroa, bem nascida, intelectual e que tendo a sorte de um bom casamento, não valorizava tal destino. 

Aos olhos de Nelly, limitada em seu mundo de poucos sonhos, esta era possivelmente a maior afronta de Virginia: 

Ter a coragem de viver como queria e da forma a qual acreditava.
Quanto a Virginia Woolf, sempre imersa em seus trabalhos, reflexões (e crises) era provável que o temperamento agitado e atrevido da criada lhe provocasse mais cansaço do que repulsa.  A própria Nelly se queixa à Lottie: “Preferia que ela brigasse, não que ficasse com essa expressão de vítima no olhar”.
Para a circunspecta Virginia, devia ser mesmo complicado conviver com  os rompantes de urgência de Nelly, que a retirava de seu processo de sonho (a criação, a intelectualidade) para lembrar que faltavam legumes na despensa e que o preço do peixe estava caro.
Duas mulheres tão diferentes, tão perigosamente opostas, que é de se admirar que tenham convivido durante tanto tempo.

A CASA DE VIRGINIA W.

ALICIA GIMÉNEZ BARTLETT
EDIOURO