segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sobre Cães, Rock e Letras

Hoje à noite meu irmão José Roberto Santos Neves tomará posse na Academia Espírito-Santense de Letras. Motivo de comemoração e orgulho que coroa uma história que ele vem escrevendo há mais tempo do se imagina.
Quem o vê hoje transitando com desenvoltura pelo mundo das Letras, junto com uma bem-sucedida carreira jornalística, talvez suponha que ele nunca tenha tido dúvidas sobre qual profissão seguir. Não exatamente. Antes de se formar Jornalista pela Universidade Federal do Espírito Santo e encontrar sua verdadeira vocação, ele quase se formou em Administração. Fato no mínimo curioso, já que o Jornalismo era um caminho óbvio na vida do menino que, desde cedo, manifestava curiosidade fora do comum e vivia pesquisando sobre assuntos de seu interesse, como raça de cães e futebol.
Não satisfeito em aprender sobre os temas, ele gostava de relatar as descobertas. Vivia com um livro sobre cães debaixo do braço narrando, para quem quisesse (ou não) ouvir, fatos curiosos sobre a espécie, como "qual o país de origem do Afghan Hound" ou "as inúmeras habilidades da raça Dobermann". Uma paixão tão grande que nos obrigava, irmãos mais velhos, a acompanhá-lo em suas peripécias, como um concurso de cães em Jacaraípe, no final dos anos 70, devidamente registrado em fotos por Guilherme.  
Para mim, única irmã, não faltam lembranças, como as brincadeiras em que ele era meu partner em programas "de TV" apresentados diante do espelho. Hoje, como ele mesmo admite, não pode pegar um microfone que dispara a falar.
Também coube a mim registrar sua primeira história, intitulada “Os três cãezinhos”, na qual ele narrava a chegada do nosso novo cão, Bug (que ele apelidou Boggie Ooggie, por causa de uma boate perto da nossa casa). Ao ser recebido pelos cães da família, Rex e Lobinho (assim mesmo, no diminutivo), o novo integrante recebe uma informação importante sobre o cachorro do vizinho - Au au au, Bug! O Bob é nosso inimigo! O texto datilografado ainda sobrevive, em papel amarelado, na casa dos meus pais.
Quem imaginaria que aquele menininho viraria jornalista e escritor? Eu imaginava.
No início dos anos 80, quando fui fazer um curso na Inglaterra, ele, então com dez anos, fazia questão de me escrever cartas, revelando as notícias, que dividia em tópicos como um mini jornal: "ESPORTES:  O Flamengo ganhou o título de campeão brasileiro, com certos erros do juiz". "DENÚNCIA: Você subornou Guilherme. Ele  diz que refrigerante é veneno". "MÚSICA: Caetano Veloso vem aqui em maio ou junho". "PESSOAL: Tirei 10 em Ciências, 8,2 em Matemática e 7,9 em Português".Tamanha criatividade me fazia rir e chorar de saudades do irmão caçula.
Numa das cartas ele conta, muito triste, que tinha tentado entrar com Guilherme no show do Caetano no Theatro Carlos Gomes, mas, por causa da idade, fora barrado pelo porteiro. Eu me pergunto: - O que fazia um menino de dez anos num show do Caetano? Era a música entrando em sua vida. Fato que se concretizou quando ele se uniu ao irmão João Paulo e nossos primos, Marcio Lacerda e João Damasceno, numa banda de rock – o Túmulo 7. Aos 13 anos ele, que parecia não ter qualquer aptidão musical, logo aprendeu a manejar as baquetas da bateria. O Túmulo 7 virou Seven, que virou Hell e depois o Zé foi perambular por outras bandas, como o Skelter e o The Rain.  Para nossa surpresa, pois, pelo que sei, ele não tem habilidade motora para mais nada na vida, a não ser batucar outro instrumento – o teclado do computador. Sem deixar de ser roqueiro, com o tempo ele aprimorou o gosto musical e resolveu – até por dever da profissão – conhecer outros ritmos, quando se apaixonou por Clara Nunes e Maysa, e se encantou pelo samba de João Nogueira, Paulinho da Viola, entre outros.  

Assim como tudo na vida do Zé, essa transição não aconteceu por acaso, mas seguiu uma lógica. Tendo passado de músico a repórter musical, da experiência que adquiriu cobrindo shows e eventos culturais, nasceram seus três livros – "Maysa", "MPB de Conversa em Conversa" e, por último, "Rockrise", o resgate de sua juventude na cena roqueira capixaba.
O que José Roberto sempre teve na vida foi coragem de ir à luta, meter a cara e fazer. Foi assim que ele escreveu seu primeiro livro, "Maysa" (Coleção Grandes Nomes do Espírito Santo). Mergulhou na pesquisa dentro e fora do estado, entrevistou nomes como Roberto Menescal e, contra todos os obstáculos, inclusive o silêncio do filho de Maysa, Jayme Monjardim, escreveu a primeira biografia da cantora. Essa persistência lhe rendeu momentos impagáveis desde a infância, como no dia em que fomos com mamãe à pracinha de Vila Velha, assistir a um comício de Gerson Camata, então candidato a Governador do Espírito Santo. O menino não sossegou enquanto não apertou a mão do Camata. Ele tinha uns oito ou nove anos na época. 
Com a paixão de quem tem necessidade vital de se expressar, José Roberto adora conversar e, quando o assunto lhe interessa, é capaz de disparar em sua análise e continuar falando até mesmo quando o interlocutor não está mais ouvindo. Não é raro a gente dizer a ele: - Zé, não estou podendo te dar atenção. Ao que ele retruca, com bom-humor: - Não faz mal, eu falo assim mesmo...
Se eu tivesse que resumir numa frase a razão pela qual José Roberto está ocupando, na Academia Espírito-Santense de Letras, a cadeira de um imortal de quem foi amigo e discípulo, o escritor e jornalista Marien Calixte, eu diria apenas:  - Estava escrito.
Quem conviveu com ele desde cedo nunca duvidou de seu talento precoce, sua persistência e seu amor pela arte e pela cultura em todas as formas. Voa, meu irmão.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Minhas Tudo (Mário Prata)

Há autores que nos fazem pensar, questionar, debater. Há autores que nos fazem sonhar, romancear. E há outros ainda que nos emocionam até as lágrimas. Seja qual for o gênero, o que importa é o quilate da literatura. Mario Prata é desses autores que nos deixam de alma leve, com suas crônicas espirituosas e seu humor sagaz. 
Ele não tem pudor de fazer os comentários mais estapafúrdios, de cara lavada, nem de se expor de calças curtas e rir de si mesmo.
Esse desprendimento está presente em “Minhas Tudo”, publicado pela Objetiva em 2001. 

Nesse divertido livro de crônicas, Prata faz um “inventário de si mesmo”, enumerando seu cotidiano através de objetos pessoais, seja um indiscreto criado mudo, um colchão usado ou um velho exemplar de Dostoiévski  “nunca lido”.
São dezenas de crônicas sobre os mais insólitos objetos e situações, o que permite que o livro seja folheado ao acaso, sem ordem cronológica, assim como são as histórias. No desencadear das ideias, cada texto traz em negrito a palavra que dará origem ao tema da crônica seguinte.
O autor incorpora com precisão o dom que todo cronista tem de narrar o cotidiano, com um olhar que todos possuímos, mas que só ele traduz em palavras. Muito do que o Prata escreve possivelmente já passou pela nossa cabeça, mas ninguém melhor do que ele para narrar situações triviais com o charme despretensioso dos que não se levam a sério. Um representante legitimo das pessoas comuns. 
Em "Minhas Tudo", entre outras hilárias situações, ele descreve a saga de um velho exemplar de “Obras Completas de Dostoiévski, Volume Quatro”. Um livro “viajadíssimo” que ele carrega pra todo lado: Alemanha, em 1978. Cuba, em 89.  E África, de 90 a 91 -, sem jamais ter lido uma linha sequer para saber “qual o bode dos irmãos russos”.  Com uma ressalva: as duas primeiras páginas, fabricadas com folhas de seda fininha, serviram para atividades menos literárias. Ele revela, na cara dura, que pode não ter lido, mas fumou Dostoiévski.
Com a mesma presença de espírito, lá vai o Mario registrar a conversa que teve certo dia com um vírus, alojado em seu computador. E o que esse vírus tinha de diferente dos demais?  Pasmem: ele não só tumultuava e ameaçava a integridade dos arquivos, como também a do próprio autor.
“- Você tem certeza que quer salvar este documento?”
“- Tenho”.
“- Absoluta? Tá uma merda.”
E a conversa se estende a ponto de o autor sonhar com a volta de sua velha Lettera 22.
Mais à frente, o cronista exaltará a importância de uma parte esquecida de nossa anatomia: o joelho, “essa palavra feia, que proporciona rimas fáceis e deselegantes”. Num quarto frio do Uruguai ele se dá conta da existência de seu joelho, que “sabe que lá fora está zero grau. E sofre, coitado.”  Seguem-se  as elucubrações pratianas sobre a serventia do dito cujo  – “Experimente fazer xixi com a perna um pouco esticada” ou “Se o sabonete cai no chão na hora do banho, esqueça.” “Mas a dificuldade maior é para se fazer amor, sem a colaboração total e imprescindível do joelho. É ele quem engata a primeira, e ele quem gira para uma marcha  a ré mais arriscada.”
Na lista de assuntos do Prata não falta o constrangimento de, durante a mudança para um apartamento novo, ver a gaveta de seu criado mudo se abrir, por acidente, deixando cair no hall do prédio e à vista dos futuros vizinhos, detalhes indiscretos de sua vida. Voaram pelo chão revistas Playboys, camisinhas, um par de brincos dourados, duas pilhas Duracell e um tubo de Redoxon, entre outros apetrechos. O “indecente  móvel” que ele considerava  mudo, entregou em poucos segundos cinco anos de sua vida.  
E quem melhor do que o Mario para analisar a utilidade de uma fila?
Contemporiza ele que “uma fila de banco é diferente de uma fila de padaria. Uma fila de campo de futebol não tem nada a ver com a fila do supermercado”.
“A pior fila, no consenso geral, é a fila do banco. Sim, você começa a sofrer com ela no dia anterior. Amanhã eu vou ter que ir ao banco. E você já dorme com a fila na cabeça(..). Ninguém esta feliz numa fila de banco ja notou? O sujeito ja chega sofrendo”. E não é que o Prata tem razão?
“Mas o pior na fila do banco é que a gente que está  mais atrás, olha a quantidade de papelzinho que o da frente tem na mão e logo pensa: isso vai longe.”
Mineiro de Uberaba, Mario Prata escreve como quem divaga, de cerveja na mão num sábado à tarde. Não é o que ele escreve,  mas a forma como o faz que o torna cativante. Tem se a  impressão de que ele é o primeiro a gargalhar de seus próprios escritos. Posso imaginá-lo fazendo pausas diante de um texto inacabado explodindo num riso solto antes de retomar a seriedade do oficio de escritor. Porque esse camarada, definitivamente, sabe rir de si mesmo tanto, quanto parece rir da vida.
 
Aconchegue-se no sofá ou na sua poltrona favorita e prepare-se para boas risadas. Acompanhe Mario falando de corpo, de umbigo, de aeromoça, de carteira e o que mais vier à cabeça. É muito provável que você feche o livro com a sensação de ter tido uma conversa leve com o vizinho ali do lado. 
Porque antes de ser um escritor ágil, certeiro e criativo, o Mario Prata é isso mesmo: o vizinho ali do lado.  


Minhas Tudo
Autor: Mario Prata
Editora Objetiva
Ano: 2001
Número de páginas: 224


terça-feira, 1 de julho de 2014

Alice e Ulisses (Ana Maria Machado)

O primeiro parágrafo já é um jogo de palavras que sibilam, remetendo a seu nome-sussurro: Alice. 
E já se prenuncia a vertiginosa viagem a que nos conduzirá a autora nesse caso de amor contemporâneo. Percebe-se um mergulho, um salto sem paraquedas, um voo no escuro. 
“Aliciada ela foi, vá lá. Mas porque quis, das delícias ao suplício. Vai ver achou que tinha alicerce. E tanto tinha que não perdeu a lucidez, nem mesmo na alegria inicial do cio, por mais variadas que tenham sido os desvairados desvãos e deslizantes desvios.”

É dessa forma que Alice, a protagonista, invade a vida de Ulisses, o outro. E também a do leitor.
Primeiro romance para o público adulto da escritora e jornalista Ana Maria Machado, Alice e Ulisses, lançado em 1983, já antecipava um insuspeito poder de sedução da autora, oculto por trás das histórias infantis nas quais ela reinava (e continua reinando, décadas depois).
Quando Alice, professora, descasada, conhece Ulisses, cineasta, casado, o que se segue é uma viagem pelo mundo da paixão, recheada de referências cinematográficas, enquadramentos sutis, citações poéticas e trechos de contos de fadas. Tudo para tecer o fio da meada que conduz à relação tempestuosa, voraz e intensa de Alice e Ulisses.  
Retrato de uma época (final dos anos 70), Alice e Ulisses registra um amor contemporâneo, em tempos de ditadura, nos quais a mulher ainda estava presa a estereótipos e o homem  (como sempre) se dividia entre aventuras extraconjugais e as bases sólidas de um casamento de aparências. Num tempo em que a relação homem-mulher ainda era cheia de arestas, com homens que podiam tudo e mulheres que pediam nada, a autora exerce sedução desde a primeira página, onde o encontro amoroso já está presente. E a poesia também.
Trata-se de um caso de amor, contado de um só fôlego, em exatas 113 páginas, usando como artifício um paralelo entre duas personagens universais, a destemida Alice (de Lewis Carrol), "capaz de mergulhar em tocas e viver aventuras" e o bárbaro conquistador Ulisses (de Joyce, releitura do Ulisses de Homero), em sua odisseia particular.  Só da mente de uma autora que se percebe contumaz leitora e amante dos clássicos, poderia surgir esse inusitado casal, cujos nomes rimam – como bem assinala uma personagem do livro, o bruxo Augusto (amigo de Alice), que os une - reúne.
É num evento de cinema que Alice, mulher moderna "que acha coquetel um pé no saco” e sempre “se esquece de pegar o guardanapo de papel para  limpar a mão”, conhece o cineasta Ulisses, que se encanta com a figura exótica “de cabelo solto e um imenso xale de velha siciliano, indeciso entre escorregar e enrolar os ombros”. Não se desgrudam mais. Entre os anos 70 e 80, vivem uma paixão atemporal, tanto ilícita quanto livre.
Bem que ela deveria ter desconfiado de que “o nome de Ulisses já indicava sua maneira de ser, saqueador de cidades, astuto e ardiloso, viajante e explorador.” Mas Alice, que tinha “total disponibilidade para mergulhar em tocas pela terra adentro",  paga pra ver.
O romance é entremeado por citações de contos de fadas, trechos de poemas e cenas de filme. Ela cita versos, ele a enquadra em imagens. Ela sabe onde pisa, ele se enreda, sem controle. “Foi duro aprender que quanto mais fosse amada mais ia ser dominada.” Mas Alice não é mulher de se dominar. Conhece os scripts, os lugares comuns do roteiro. Ela sabe como a história termina. Todos os personagens dele (o cineasta), ou matam ou morrem. “Você vai me matar.”
Quando Alice está cada vez mais envolvida numa relação na qual não é só Ulisses quem perde a razão, surge em seu caminho Adélia, a esposa (do grego Adelo, invisível). É a Penélope de Ulisses (ou Molly, de Joyce) entrando em cena.
"E, Deus do Céu, lá estava ela sentada diante da divina Adélia, deusa-Amélia do lar, muito arrumada nos cabelos pintados e penteados em cabeleireiro". E uma inusitada proposta fará nossa protagonista repensar todo o roteiro.
É justamente Adélia, tão tradicional, tão antiquada, tão Amélia, quem trará uma alerta a Alice: - A vida não é um conto de fadas, minha filha.
Numa linguagem sutilmente cinematográfica, Alice, que também é cinéfila, descobrirá qual será seu script.


Alice & Ulisses
Ana Maria Machado
96 páginas
Editora: Nova Fronteira


quinta-feira, 17 de abril de 2014

Do Amor e Outros Demônios (Para recordar o querido Gabo)


Do Amor e Outros Demônios traz todos os ingredientes que compõem uma história de Gabriel Garcia Márquez. Sim, baseia-se em um acontecimento por ele vivenciado. Sim, utiliza elementos da mitologia popular. Sim, encerra uma crítica à intolerância religiosa.  E sim, mistura amor e sofrimento, como se ambos fossem sentimentos indissociáveis.
Nesta obra publicada pela Editora Record, em 1995, ele narra uma história passada em fins do século XVIII na Colômbia, então Colônia Espanhola, envolvendo um monge exorcista e uma menina  supostamente possuída pelo demônio.
O livro tem inspiração numa história real, de seus tempos de repórter em 1949, quando, ao cobrir a remoção das criptas funerárias de um Convento, depara-se com uma ossada com cabelos cor de cobre de aproximadamente 22 metros. Recorda-se, então, de uma lenda contada por sua avó sobre uma marquesinha milagreira de longa cabeleira, que morrera mordida por um cão raivoso. Anos depois, o já famoso escritor recria a história da menina, brindando-nos com uma dolorosa narrativa sobre o amor – e seus demônios.
A vida de Síerva Maria já começou errada, a partir do casamento, forjado por interesse, do Marquês de Casalduero e sua segunda esposa, Bernarda, que não trouxera felicidade a nenhum dos cônjuges, seja o marido enganado ou a esposa ardilosa. 
Logo eles passariam a viver distantes um do outro, tendo ela arranjado inúmeros amantes na tentativa de encontrar um prazer nunca alcançado. Mas antes que isso acontecesse, um bebê fora concebido: Síerva Maria de Todos Los Angeles. Rejeitada pelos pais desde o nascimento – sua mãe a odiou na primeira vez que a amamentara -, cresceu entre a criadagem negra da casa, recebendo deles o nome de Maria Mandinga e sendo iniciada nos ritos africanos. Com seus colares de contas dos orixás e uma longa cabeleira ruiva que lhe pendia aos pés como um vestido de noiva, a menina não parecia ser deste mundo.
Quando, aos 12 anos, Síerva Maria foi mordida por um cão, cria-se a suspeita, segundo a crendice da época, de que acabaria possuída por demônios. O pai, com remorsos, cai de amores pela menina, que, criada sem carinho, recebe a aproximação com desconfiança. Procurando ajuda na ciência e no curandeirismo para salvar a filha, ele chega  à casa do médico mais famoso da região, Abrenúncio de Sá Pereira Cão (personagem dos mais instigantes da obra). Ateu convicto de alma generosa, o médico afirma que Sierva Maria não tinha sintomas de raiva, mas sim, de falta de amor. Note-se aí a comparação sugerida pelo autor entre raiva- doença e a raiva- sentimento, da mesma forma como ele irá associar mais à frente os sinais da possessão demoníaca com sintomas da paixão.
Encaminhada ao Convento de Santa Clara para ser tratada por “obreiros” de Deus, percebe-se o fanatismo e as arbitrariedades da Igreja de então, expostos por Márquez na forma com que a menina é (mal) acolhida no lugar que deveria salvá-la.. Demoram a notar sua presença, e quando o fazem, é para considerar seus estranhos hábitos, seus colares africanos, seu conhecimento do idioma ioruba e sua força incomum, atribuindo a estes um sinal do demônio – tem se medo daquilo que de desconhece.
Encerrada numa cela escura, sem contato com o mundo, a menina é banhada com água benta e esfregada até aumentar as feridas. Logo sua cela estará coberta de excrementos e seus cabelos, de piolhos. Como profetizara Abrenúncio, o abandono e os maus tratos é que acabariam por torná-la irrecuperável.
Para investigar o caso, chega ao convento o jovem Padre Cayetano Delaura, um literato de 36 anos. Na primeira tentativa de exorcismo, ele encontra uma menina enfurecida vociferando em dialeto desconhecido. Retorna ao bispo afirmando ser aquilo – “um demônio, meu pai, e dos mais terríveis”. Logo, porém, ele já estará encantado pela menina. Será este o verdadeiro demônio que ele irá enfrentar, com todas as vicissitudes, vícios, fraquezas e maravilhas. 

Os demônios que habitavam Síerva Maria e alcançaram o Padre Delaura tinham um nome: amor.


R.I.P, Gabo. 17-04-2014

Adeus, Gabo.

O texto de hoje é uma lágrima. Nada do que eu escreva irá traduzir o vazio dessa perda. Tampouco descreverá a alegria de ter tido contato com a riquíssima obra desse grande autor latino. De ter viajado, sonhado e me emocionado com suas histórias singulares. Aos críticos e estudiosos, deixo a tarefa de narrar o que representou Gabriel Garcia Marquez para a literatura mundial. A mim, resta apenas, com a humildade de uma entre seus milhões de leitores, agradecer-lhe, por tornar minha vida menos morna, menos árida e mais fantástica, querido Gabo.
Descanse em paz.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Gertrude Stein, 140 anos.

Não é minha escritora preferida. Não é nem de longe o estilo de escrita que eu aprecio. Só li, de sua autoria, A Autobiografia de Alice B. Toklas, que merece aplausos. Mas, como eu admiro mulheres que desbravam, que ousam, que se impõem em sua área de atuação, e hoje é seu aniversário de nascimento, o post do dia é para ela.

Gertrude Stein nasceu em 3 de fevereiro de 1874, na cidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos. Membro de uma próspera família judia próspera, passou boa parte de sua vida na Áustria e na França. Estudou Psicologia com os renomados William James e Henri Bérgson, não chegou a se formar e mudou-se para Paris em 1903. Lá conheceu a também americana Alice B. Toklas, com quem passou a viver e constituiu uma sólida relação, incomum para a época.

Em sua casa na Rue de Fleurus, número 27, colecionava obras de arte e criou um ateliê onde recebia um grupo de artistas e intelectuais, como Picasso, Matisse, e Guillaume Apollinaire e escritores ex-patriados como James Joyce, Ernest Hemingway e Ezra Pound. Os encontros se tornaram célebres e aquele grupo de escritores ficou conhecido como a geração perdida. Esse período é retratado em seu único best seller, A Autobiografia de Alice B. Toklas, de 1933. Nele Gertrude revela como jovens criadores, de origens as mais variadas, foram se refugiar em Paris nos tempos de guerra. A obra se tornaria um dos marcos essenciais do movimento vanguardista.
Suas primeiras obras, O Modo de Ser dos Americanos, que ela escreveu de 1906 a 1908, e Três Vidas, de 1909 utilizavam recursos textuais difíceis de se absorver – alguns críticos consideravam sua escrita automática.  Criava, por exemplo, parágrafos completos sem nenhuma pontuação. Era considerada uma autora genial, mas hermética.  
A Autobiografia de Alice B. Toklas, que escreveu usando como narradora sua companheira da vida inteira, foi a obra que lhe trouxe notoriedade e aceitação por parte de público e crítica.

Frases:
"Se você não pode dizer nada gentil sobre alguém, sente-se ao meu lado".

"Críticas não são literatura."

"Para mim, ler e escrever é sinônimo de existir".

"Escrever é escrever é escrever é escrever é escrever é escrever é escrever".

"É verdade, os judeus só deram três gênios originais: Cristo, Spinoza e eu."

Retrato de Gertrude Stein pintado por Picasso

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Maysa, dois olhos e uma boca.

Ele não tinha nem seis anos de idade, quando Maysa, a musa dos olhos verdes da música brasileira, se dirigiu para a morte, no dia 22 de janeiro de 1977, a bordo de sua Brasília azul, na Ponte Rio Niterói. Ainda assim, o jornalista capixaba José Roberto Santos Neves aceitou o desafio de contar a história de uma das maiores cantoras que o país já produziu.
Dona de uma voz grave e rascante, Maysa cantou como ninguém a dor e a delícia de ser o que é (bem antes do famoso verso de Caetano Veloso).
Inicialmente o livro "Maysa"  fez parte da coleção Grandes Nomes do Espírito Santo, organizada por Antônio Pádua Gurgel, que reúne biografias de personalidades ligadas à história do estado. Mas o autor gostou tanto da experiência que lançou uma segunda edição em 2008, repaginada e reabastecida de informações que ele alinhava com o respeito e o cuidado de quem aprendeu a admirar ainda mais Maysa, à medida que desvendava sua história, repleta de emoção, entrega, paixão e dor.
No livro, José Roberto conta como Maysa, sendo filha de  família ilustre capixaba (seu avô foi o Barão de Monjardim e seu pai, Alcebíades Monjardim, foi deputado estadual e federal), acabou indo nascer em Botafogo, Rio de Janeiro, no ano de 1936, onde viviam os avós maternos. E pelas mãos de uma parteira, como era comum na época.
Sempre com foco no ES, ele revela que Maysa viveu o primeiro ano na capital do estado, Vitória, mudando-se com a família para Bauru, no interior de São Paulo, quando seu pai é convidado por Getúlio Vargas para exercer o cargo de Fiscal do Imposto do Consumo.
Em São Paulo, a casa de Maysa respirava música. Além da tia Lia, que tocava piano e a ensinou a dedilhar o instrumento, sua mãe era amiga de Elizeth Cardoso, que se tornaria sua inspiração. E seu pai, amigo de Sílvio Caldas, com quem a menina aprendeu os primeiros acordes de violão.
Mesmo morando fora, as raízes capixabas são mantidas e a família continua a passar o verão em Vitória, na casa de parentes. Dessa época, vem a convivência intensa com o primo Jayme Figueira, cujo depoimento é valioso no conteúdo do livro.
Segundo José Roberto, a vida de Maysa dá uma guinada logo no fim da adolescência quando conhece o empresário André Matarazzo, 18 anos mais velho, rico e influente. Ao se casarem, em 1954, ela tinha apenas 18 anos, e a cerimônia foi tão concorrida quanto um casamento de celebridades. Dois anos depois, nasce seu primeiro e único filho, Jayminho, que se tornaria o reconhecido diretor de novelas Jayme Monjardim. 
O casamento começa a dar sinais de desgaste. Maysa, apaixonada pela música, passa a se apresentar, timidamente, em eventos fechados, até que – como era de se esperar, por seu alcance vocal -  surge o convite para gravar um disco. A rigidez de André, que não via com bons olhos o desejo da esposa de cantar profissionalmente, e o peso do nome Matarazzo tornam-se empecilhos para a carreira. Para gravar seu primeiro LP, "Convite para ouvir Maysa", o marido exige que ela não use o sobrenome e que a renda seja revertida para fins beneficentes. Mal sabia ele que estava ajudando a lançar um nome que o Brasil jamais esqueceria.
Em pouco tempo, a bela moça mergulhou na carreira artística, conquistando bem mais que o público familiar, atraindo os olhos e ouvidos dos críticos e encantando o país. A carreira vai de vento em popa. Já o casamento, naufragava. 
“No segundo semestre de 1957, convidada para apresentar um programa na TV Rio, Maysa disse ao pai que não voltaria mais para São Paulo, nem para o marido. Alcebíades a entendeu. André, nem tanto. Ele foi ao Rio várias vezes tentar a reconciliação. Mas Maysa estava decidida.”
Com a separação, Jayminho é criado pelos avós maternos, já que a mãe viajava muito a trabalho. Maysa passa a enfrentar o grande inimigo de sua vida: o alcoolismo. Com tendência a engordar, começa a tomar moderadores de apetite, que, combinados com doses de uísque, a deixavam alucinada. Se a mistura já era perigosa, a personalidade forte de Maysa apimentava ainda mais seus efeitos. Desbocada, irônica e voluntariosa, ela se entrega de corpo e alma, à música e às paixões. Ela mesma admitiria, segundo José Roberto, que entre 1958 e 1972 sua vida se  tornaria “um pileque só”.
“A bebedeira a levava a tomar atitudes extremas como volta e meia atirar um sapato, copo ou microfone na cabeça das pessoas que conversavam mais alto nas boates onde ela se apresentava”. Bem mais radical que João Gilberto.
Estrelando o programa Encontro com Maysa, na Record, o sucesso da cantora não se refletia em seu estado de espírito.
“Compus muitas musicas e devo ter gravado umas cinquenta. Elas sempre refletiam meu estado de alma, minha tristeza e solidão. Nunca consegui compor nada alegre”.
Quando a Bossa Nova chegou, arrebatando corações, Maysa até flertou com o ritmo, mas estava mesmo encantada com a dupla Tom e Vinicius.  Segundo José Roberto Santos Neves, entre as 24 gravações de “Eu sei que vou te amar” está a dela, no LP Maysa é Maysa... É Maysa... É Maysa, de 1959.
No mesmo ano, sairia o quarto LP, com músicas como "Exaltação do Amor", de Tom e Vinicius e Noite de Paz, de Dolores Duran, que viria a falecer naquele ano.

A carreira de Maysa seguiu em altos e baixos, confundindo-se com sua vida. Dentre seus grandes amores estão Ronaldo Bôscoli e Carlos Alberto. Com o primeiro, viveu um amor entre tapas e beijos, com direito a muitos barracos. Com o segundo, afirmava ser uma paixão de outras vidas. Entre um e outro, casa-se com o empresário Miguel Azanza e decide morar fora do país, tentando uma carreira internacional. A temporada no exterior não dura mais que três anos. Nem o casamento.
Está tudo contado no livro de José Roberto, que foi o primeiro a lançar uma biografia da cantora, reabrindo o interesse sobre sua vida e obra. Depois dele, vieram outros ótimos livros sobre a musa, de quem Manoel bandeira escreveu – "Maysa são dois olhos e uma boca".  
Para compor um retrato da bela cantora, José Roberto colheu depoimentos de amigos próximos como Roberto Menescal, Ricardo Cravo Alvim e Sergios Sarkis, e de membros da família, como o primo e grande amigo Jayme Figueira, além de consultar obras como “Eu e elas”, a autobiografia de Ronaldo Bôscoli e “Chega de Saudade” (Ruy Castro).
Autora de canções como “Ouça” e “Meu Mundo Caiu”, Maysa foi intérprete memorável de músicas como “Se todos fossem iguais a você” e “Ne me quite pas”. Em cada gravação, deixou sua marca registrada – a emoção à flor da pele.
São incontáveis e divertidas (ou não) as histórias de seus porres homéricos, barracos e confusões. Mas Maysa seguramente foi muito mais do que isso – e por trás da aparência agressiva, havia uma mulher carente. Incompreendida, talvez. Sofrida, certamente. Mas inegavelmente uma das maiores – senão a maior voz que o Brasil viu nascer.
No livro, que traz na capa uma arte de seus belos olhos,  José Roberto Santos Neves traz um aperitivo para quem quer conhecer mais sobre a mulher Maysa. Porque a cantora dispensa apresentações.






José Roberto Santos Neves -  Nasceu em Vitória em 1971. Formado em jornalismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com pós-graduação em Gestão em Assessoria de Comunicação pela Faesa.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

No aniversário da Simone, A Cerimônia do Adeus.

Um dos maiores pensadores de seu tempo e grande expoente do existencialismo ateu,  Jean Paul Sartre (1905-1980) defendia  que a existência precede a essência, e, que, portanto, cada homem é responsável por seus atos. Para alguém que sempre pregou a não influência da natureza ou mesmo de Deus nas ações humanas, encarar uma gradativa decadência física e intelectual chega a ser uma ironia.  E foi o que Sartre viveu em seus últimos dez anos, aos quais temos acesso através do minucioso, rascante, dolorosamente sincero e por vezes indiscretamente cruel testemunho de sua companheira de uma vida inteira, a também filósofa Simone de Beauvoir.
Publicado em 1981, um ano após a morte de Sartre, “A Cerimônia do Adeus” traz um relato de seus últimos anos, acompanhados de suas próprias reflexões sobre a velhice, a decadência física e intelectual e a finitude da vida.
Enquanto a primeira parte do livro se baseia no diário pessoal da autora, com registros de inúmeros episódios de evolução da senilidade de Sartre, a segunda parte, com uma série de entrevistas que ela realizou com ele em 1974, parece pedir que nos lembremos do filósofo por suas ideias, estas sim, perenes.
“É então a cerimônia do adeus?” – disse-me Sartre quando nos separamos por cerca de um mês, em princípios de um Verão. Compreendi então o sentido que teriam um dia essas suas palavras. A Cerimônia durou dez anos e são esses mesmos anos que descrevo neste livro.”
Tendo formado o casal mais influente da intelectualidade no século XX, Simone e Sartre criaram uma relação amorosa absolutamente fora dos padrões para a época  – embora sempre juntos nunca se casaram oficialmente.  Mais que uma união, tinham um pacto: - Jamais esconder nada um do outro. Não eram fieis fisicamente – ambos tinham seus amantes, mas jamais se separaram. Apesar das incontáveis aventuras dele (que embora feio e vesgo, atraía belas e jovens mulheres pelo seu intelecto) e das inúmeras paixões dela, entre as quais a mais famosa pelo escritor norte-americano Nelson Algren.
Mais do que parceiros intelectuais pode-se dizer que eram cúmplices. Uma ligação que nem sempre foi ética (após a morte de ambos a correspondência trocada entre os dois revelou que partilhavam as mesmas amantes e nem sempre eram delicados nos comentários sobre as mesmas). Seguiam a máxima do existencialismo “se você me ama, não me ame”, preservando a liberdade de ambos.
Não se pode negar, porém, que constituíram uma parceria poderosa e quase imbatível, um contribuindo para o crescimento do outro.
Convicta da missão que um intelectual tem como testemunha de sua época (é preciso contar tudo, escrever tudo), Simone decidiu, a partir do diário que manteve durante uma década, publicar uma obra sobre o que ela chamou de “o fim de Sartre”. Um fim patético para aquele que foi um dos mais respeitados intelectuais de seu tempo.
Tendo partilhado com Sartre seus escritos ao longo de uma vida inteira, deve ter sido doloroso para ela escrever o prefácio do livro, no qual anuncia ser este “ o único certamente que você não leu antes que o imprimissem. Embora todo dedicado a você, ele já não lhe concerne”. Ao escrevê-lo, coerente com seus princípios ela dirige-se a Sartre, sabendo que fala para “o nada”. “Esse você que emprego é um engodo, um artifício retórico. Ninguém me ouve; não falo com ninguém.”
“Você está enclausurado; não sairá daí e eu não me juntarei a você: mesmo que me enterrem ao seu lado, de suas cinzas para meus restos não haverá nenhuma passagem”.  Uma constatação melancólica para alguém que sempre acreditou que a vida é uma só – aqui e agora - e não tem continuidade.
Ao relatar os últimos anos de Sartre, Simone teve o cuidado de ser o mais sincera possível, não escondeu nem floreou episódios. Ateve-se a contar os fatos como aconteceram. 
Mantendo-se fiel à memória, registra um episódio em que  Sartre queixa-se de “seu entorpecimento mental, com uma espécie de
ingenuidade encantadora":  "Não estou bobo. Mas estou vazio."
Há trechos respeitosos e comoventes como quando, aproximando-se do fim, o próprio Sartre admite em uma conversa com Simone que  “é preciso ser modesto quando se é velho”. Ou quando ele divaga sobre quanto tempo viverá “Não passarei dos setenta” (morreu aos 75). Há, por outro lado, capítulos, extremamente cruéis como os relatos de seu descontrole com a bebida e o fumo; os abcessos que o levaram a perder os dentes. A progressiva falta de memória e a incontinência urinária.

“Em Paris, na minha casa, no início de outubro, quando Sartre se levantou de onde estava sentado,
para ir ao banheiro, havia uma mancha em sua poltrona”.

Inexoravelmente chega a hora do adeus:
“Às nove horas, o telefone tocou. Ela me disse: "Terminou." Fui para lá com Sylvie. Ele estava igual a ele mesmo, mas já não respirava. Sylvie avisou Lanzmann, Bost, Pouillon, Horst, que vieram logo. Permitiram que ficássemos no quarto até cinco horas da manhã. Pedi a Sylvie que fosse buscar uísque e bebemos, falando sobre os últimos dias de Sartre, e das providências a tomar.”
Sozinha com Sartre, inerte na cama do hospital, Simone deita-se sobre o lençol para passar uma última noite com ele. 
“Estava mais ou menos anestesiada por valium e gida em meu desejo de não desmoronar. Dizia a mim mesma que era exatamente o enterro que Sartre desejava e que ele não o saberia.”
Foi então que ela escreveu na mente a última frase  do livro, que se tornaria o epitáfio de seu ídolo, parceiro e cúmplice.  
"Sua morte nos separa. Minha morte não nos reunirá. Assim é: já é belo que nossas vidas tenham podido harmonizar-se por tanto tempo."
Publicada um ano após a morte do filósofo, a obra traz como dedicatória:  “para aqueles que amaram Sartre, que o amam, que o amarão.”
Existem várias maneiras de ver a obra "A Cerimônia do Adeus", último livro que Simone publicou em vida (ela faleceu cinco anos depois). Com horror, com espanto, com indignação ou com ternura e admiração. Podemos considerá-la uma homenagem sincera a Sartre ou uma despedida cruel da maior parceira de sua vida, a quem ele chamava carinhosamente de Castor. Porém, não há como ignorar a coragem da autora de ultrapassar os limites de seu papel de escritora. O que não faria Beauvoir se vivesse hoje, em tempos de internet, em que não há mais barreiras intransponíveis - e tudo pode ser visto, ouvido, lido, em tempo real?
Apesar de questionável para alguns e embora atroz em muitos momentos, ao descrever Sartre com toda a sua fragilidade - cambaleando, esquecido, ausente - Simone acabou criando uma obra admirável sobre a finitude da vida. Uma constatação de que nada é definitivo. Nem a vida, nem o poder, nem a glória. 
Nem mesmo Sartre e Beauvoir.